Antes de saber que eu era autista, eu já sofria.
Sofria sem nome, sem explicação, sem abraço que realmente me alcançasse.
Falei tarde. Li cedo.
E isso roubou pedaços da minha infância.
Enquanto outras crianças brincavam, eu me perdia nos livros — e no silêncio.
Era como se o mundo tivesse começado difícil pra mim antes mesmo de eu entender o que era mundo.
A escola era um campo de guerra para os meus sentidos.
Os barulhos, os cheiros, as regras não ditas, os olhares… tudo demais. Tudo me engolia.
Mas eu amava estudar. Sempre amei.
Desde que fosse sozinha.
Desde que ninguém tentasse me explicar do jeito deles, porque eu aprendia melhor do meu jeito.
O bullying me rasgava em silêncio.
Riam das minhas pernas tortas, da minha magreza, da minha ingenuidade.
Apanhei por causa de trocados.
Sofri por ser boa, porque ser boa demais, nesse mundo, é como andar com um alvo nas costas.
A igreja…
Um lugar que eu acreditava ser de paz, mas onde meu corpo e minha mente imploravam por silêncio.
As luzes, os gritos, as palmas, os abraços inesperados.
Tudo doía.
Mas, mesmo assim, eu amava a Deus. Sempre amei.
Muito cedo, quis morrer.
Tantas vezes. Desde os 9 anos.
Hoje meu filho tem essa idade, e só de lembrar, meu peito aperta.
Eu sabia que era diferente. E essa diferença doía mais do que qualquer tapa.
Era um silêncio gritante que ninguém ouvia.
Aos 16, tudo virou.
Nova casa, nova escola, nova igreja, novo bairro, nova rotina.
Perdi o pouco de chão que ainda me sustentava.
Afundei em depressão.
Me apeguei ao único fio de controle que encontrei: a comida.
Ganhar peso me desesperou.
O hiperfoco virou dieta.
A dieta virou anorexia.
Depois veio um hiperfoco em alguém de longe.
Confundi tudo. Virei personagem de um romance que só eu escrevia.
Cartas, presentes, idealizações.
Durou anos.
Mas, como todo hiperfoco… não tem final. O romance teve. Eu fiquei.
Casei. Tive filhos.
E só depois disso tudo… descobri o nome do que me acompanhou a vida inteira: autismo.
Recebi o diagnóstico.
Mas não recebi ele com facilidade.
Me debati. Neguei.
Achava que não fazia sentido.
Mas hoje, tudo faz.
Faz sentido eu odiar festas, shows, aglomerações.
Faz sentido me sentir doente em lugares cheios.
Faz sentido eu nunca ter conseguido manter amizades com facilidade.
Faz sentido eu ser tão vulnerável. Tão inocente.
Faz sentido as mentiras compulsivas — uma tentativa desesperada de ser aceita, de não ser deixada de lado.
Faz sentido a dor de estar sozinha, mesmo cercada.
As crises, os shutdowns, os meltdowns…
Faz sentido o burnout.
E como ele pesa mais ainda quando se é mãe.
De quatro crianças.
De três possivelmente atípicas.
Faz sentido a culpa.
Faz sentido a ansiedade que aperta até a alma e te faz querer sumir.
Faz sentido o medo.
Mas agora eu sei.
Eu entendo.
Eu me vejo.
E isso muda tudo.
Eu não sou defeituosa.
Eu sou neurodivergente.
E sobrevivi.
Com marcas, sim. Mas também com força.
Com fé.
Com amor.
E mesmo nas dores, continuo.
Pela criança que fui.
Pelos filhos que tenho.
Por mim.
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